12/21/2015




                                       ENTRE OS POVOS NÃO HÁ CONTRADIÇÕES


Sinto muitas recordações de África, mais concretamente de Moçambique. Recordo-me essencialmente das muitas amizades que lá deixei. Da maneira humilde, como eu era tratado e respeitado.
Ainda me lembro bem, das centenas de partos que fui "obrigado a fazer" pela força das circunstancias. Por não haver ninguém especializado para o efeito. Embora eu não seja obstetra, mas eu fui chamado a acudir aquela gente. Após a Independência de Moçambique, as populações ao redor da nossa Empresa ficaram literalmente sem assistência médica e medicamentosa. Eu na ausência de médicos e enfermeiros, senti-me na obrigação de assistir e medicar milhares de mulheres, homens e crianças. Era de mim que os autóctones se socorriam, por não terem mais ninguém com capacidades a quem recorrer.
O que mais me sensibilizou naquelas gentes, foi o seu sentido de reconhecimento e de justiça! Eles traduziam esses sentimentos, fazendo a partilha. Partilhavam com gosto, humildade e prazer o pouco que tinham e gostavam que eu aceitasse o que me davam. Ofereciam-me pequenos animais, frutas regionais, citrinos e até cereais. Eu sempre aceitei, porque o prazer de dar, é sempre igual ao prazer de receber.
Poderei contar muitas estórias vividas na primeira pessoa. Estórias que por si só, dizem bem da riqueza daqueles Povos. Contarei apenas aqui um episódio que demonstrará bem, a bondade e a reciprocidade que eu recebia daquelas gentes: Certa noite, lembro-me como se fosse hoje. Era sábado. Como de costume fomos ao cinema no Pavilhão do Ferroviário, no pequeno burgo de Iapala,
que distava a cerca quarenta quilómetros de Nagiua a Povoação onde vivíamos e onde estava situada a nossa Empresa. Durante  a sessão de cinema, choveu torrencialmente, mais parecendo um dilúvio. Era o tempo das monções. Durante cerca de três horas, choveram dezenas de centímetros cúbicos por metro quadrado. Choveu tanto que todos os rios daquela zona transbordaram para as margens.
A cerca de um quilometro da nossa Empresa, portanto já a chegarmos de regresso a casa, constatamos que também a agua do Rio Nagiua, era tanta, que passava sobre a ponte, cujo tabuleiro era feito de travessas de madeira, do género das que eram aplicadas sob os carris dos caminhos de ferro. Porque eu não conseguia ver a ponte por causa de tanta agua que passava sobre ela, resolvi arriscar, orientando-me pela outra margem e pela estrada. Assim fui andando devagarinho, na esperança que todas as travessas do tabuleiro lá estivessem. Porém, tal não aconteceu. Quando chegado mais ou menos ao meio do dito tabuleiro, as rodas da frente caíram em falso ficando a viatura suspensa na blindagem, de tal maneira que tivemos de abrir as portas para a agua da enxurrada passar através dos lugares da frente.
Deixei então, porque assim me impuseram, serem aqueles homens a quem eu dera boleia e pagara múltiplas vezes as entradas para o cinema, a decidirem aquela situação deveras difícil e muito perigosa! Lembro-me que eles deram alguns gritos, na sua linguagem, em jeito de SOS. No espaço de cerca de quinze minutos apenas, juntaram-se várias centenas de populares, para me ajudarem. Para nos ajudarem, porque dentro daquela viatura que balançava devido à forte força das aguas, estavam também a minha esposa e os meus filhos.
Enquanto alguns homens foram rio abaixo na busca das travessas que tinham sido levadas pela agua, pondo-as no lugar, outros ao som de um canto ritmado, levantaram toda a frente da viatura que dali saiu salvando-nos de uma morte quase certa.
Esta é apenas uma estória exemplar que eu já contei inúmeras vezes, que irei continuar a contar, mas que já tinha prometido a mim próprio escrever. Hoje, talvez tocada pelo Espírito Natalício apetece-me enviar daqui um abraço a todos os Povos Africanos, especialmente aqueles que sofrem os horrores do racismo e da fome.
Aqui deixo o meu bem-haja às gentes Macuas, que sempre me respeitaram e estimaram. Ali a duzentos quilómetros de Nampula, vivi cerca de dezasseis anos, seis dos quais após a Independência de Moçambique. Em suma: para terminar direi apenas; (Estimei e fui estimado. Respeitei e fui respeitado!!) Tenho dito,

                                                                                     MÁRIO DE OLIVEIRA

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